23 abril, 2010

"Boquinha"



No ano de 1969 eu tinha 14 anos e cursava a 3ª série do ginasial no colégio José Accioli, uma escola pública de Marechal Hermes, Rio de Janeiro. Nesse ano eu ia com meu colega José Carlos, o Bahia, e outros companheiros, fazer alguns treinos de atletismo na pista da Aeronáutica, no Campo dos Afonsos, onde funcionava a Academia da Força Aérea. Nosso professor de Educação Física conseguira aquele local para preparar alguns alunos para representar o colégio nos jogos estudantis, que se daria naquele ano no estádio Célio de Barros, que fica colado no Maracanã. Nosso colégio não tinha qualquer equipamento ou pista de corrida.
Éramos alunos que levávamos o dinheiro contadinho para uma mariola ou um caramelo na hora do recreio. Íamos a pé do colégio ao Campo dos Afonsos e vice-versa, talvez uns dois quilômetros. Como estudávamos à tarde o treinamento era pela manhã. Corríamos e saltávamos por umas duas horas e ao final, cansados e suados colocávamos nossos uniformes escolares e seguíamos direto pra escola. Sem banho, sem lanche, sem passagem, mas alegres e falantes. Tudo por entusiasmo, pois naqueles tempos as coisas eram difíceis para garotos da nossa idade. Era normal. Era comum.
Certa vez, numa sexta-feira, após forte treinamento físico, esgotados até a última fibra do corpo, só com o café da manhã no estômago, eu e o Bahia nos demoramos um pouco mais que os outros. Não tínhamos ânimo nem para trocar o uniforme e seguir rumo ao colégio. Vimos uma movimentação diferente no ginásio, no qual alguns militares preparavam um churrasco para o almoço deles, ali mesmo à beira do campo. O cheiro da carne sendo assada na brasa nos atiçou a fome e fomos dar uma olhada e tentar conseguir alguma coisa, pois a situação estava feia pra nós. Nos acercamos do cozinheiro (um taifeiro, como viria a saber mais tarde) que espalhava na grelha as carnes e umas salsichas que eu nunca vira antes; eram grandes, brilhosas e, com certeza, deliciosas! Eram salsichões, com explicara o taifeiro. Daria tudo para comer uma delas. Pedimos que nos desse uma para dividirmos, pois estávamos com muita fome. Lembro-me bem da expressão que o Bahia usou na ocasião: para fazermos uma "boquinha". Não, não podia fazer isso porque eram para o almoço dos cadetes e que se o chefe o visse fazendo isso ele seria "mijado" (tomar uma bronca). Não sabíamos o significado de tal termo na época e o tomamos ao pé da letra. "Pode deixar, moço!". Não seríamos nós que faríamos alguém sofrer tal humilhação. Ser "milico" deveria ser muito difícil, mesmo!
Fomos embora com fome e eu espantado com o ocorrido. Embora de origem pobre, fora criado conforme o costume espanhol de que família não é só pai, mãe e irmãos. Nesse modelo familiar, eu e meus muitos primos almoçávamos, jantávamos e fazíamos lanches não só nas nossas casas, mas também nas dos tios, primos e vizinhos. Vivíamos perto uns dos outros, na época. Era assim que eu estava acostumado. Nunca antes me fora negada comida. O Bahia, mais escolado na vida, disse pra "deixar pra lá", pra não esquentar a cabeça com isso. Deixei pra lá.
Uma coisa interessante é a vida.
Três anos depois ingressei na FAB como aluno da EEAR e servi por mais de 34 anos na Força Aérea. Nesse tempo de serviço, galguei o oficialato e atingi a última patente possível, exerci diversas funções de relevo no meio militar. Sem falsa modéstia, posso dizer que fiz minha parte e fui muito bem sucedido na vida castrense.
Conheci o Brasil quase todo e cheguei a realizar vários cursos, inclusive no exterior.
Nas diversas organizações por onde passei, posso dizer que fui servido do bom é do melhor em termos gastronômicos. Degustei bebidas das mais finas procedências e experimentei iguarias dos mais diversos sabores e texturas, presentes em muitos jantares, almoços e coquetéis.
Entretanto, nada disso conseguiu preencher o vazio da "boquinha" não consumada naquele dia, no Campo dos Afonsos.